Muito obrigado por aceitar o nosso convite e conceder essa entrevista para o Deus Ateu! É sempre um prazer e uma honra recebê-la para um bate-papo. Essa é a segunda entrevista que tenho o prazer de fazer com a Elieni. Na ocasião anterior, tratamos do Laço de Fita. Agora, abordaremos o seu mais recente livro: As coisas de verdade habitam as pedras (2023, editacuja).
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As Coisas de Verdade Habitam As Pedras – Uma Rápida Entrevista Com Elieni Caputo – Por Alan dos Santos
Alan dos Santos – No texto de capa, consta que o seu livro é uma novela absurdista inspirada em Um sopro de vida, de Clarice Lispector. A influência de Lispector é bastante notória ao longo do livro. Mas sinto que há muitas outras influências escondidas nas entrelinhas. Todo o seu texto é muito poético e profundo, parece que há sempre algo escondido prestes a eclodir para a superfície. Como surgiu a ideia de escrita do livro, do que ele trata fundamentalmente e o que é um texto absurdista?
Elieni Caputo – A ideia de escrever o livro surgiu um pouco antes de ingressar no doutorado, quando eu estava cursando uma disciplina sobre Clarice Lispector com o professor Ricardo Iannace. Lemos A paixão segundo GH, alguns contos da autora e Um sopro de vida, que foi o romance que, digamos, catalisou a escrita das Coisas de verdade. Sobre minhas referências, eu estudo filosofia há bastante tempo, sempre me interessei por ciências no geral também, especialmente Biologia. Cursei Psicologia na UFSCAR, e fiz várias disciplinas optativas no departamento de Filosofia; o orientador da minha monografia, sobre a imaginação em Sartre, foi o filósofo Bento Prado Júnior, que foi um dos pensadores que influenciou o início da minha escrita poética. Voltando às Coisas de verdade, eu diria que ele é um romance sobre um tempo esquecido e imemorial, que substitui relações lógicas por analógicas, na esteira de um estado onírico, no limiar entre consciente e inconsciente. Um texto absurdista fere a lógica, quebra expectativas, subverte o sentido das coisas, e acho que é por aí que meu livro caminha: ele se apoia na ciência e na filosofia e, ao mesmo tempo, deslinda as limitações e os problemas do pensamento racional, caminhando para o pensamento mágico…
Alan dos Santos – Como já mencionei, o texto de As coisas de verdade habitam as pedras é muito poético. E também é muito inteligente. Há inúmeras reflexões sobre o tempo, sobre o ser, sobre a relação humano x natureza, sobre intimidade, sobre vazios, desejos, solidão e por aí vai. Comecei a leitura e senti que estava lendo um ensaio de filosofia da ciência, na sequência senti que eu estava diante de um tratado sobre a origem da vida e da vida humana, depois fui lançado para o melhor da reflexão psicanalítica, mas logo percebi que, no fundo, era poesia o que eu estava lendo. A força inaugural do livro é a descoberta da eternidade. Suspendi o anseio por compreensão e desfrutei da leitura.
Funcionou pra mim como um longo poema. Eu adorei a experiência e a travessia. Como é pra você transitar entre a poesia e a prosa? Você sente que encontrou um espaço próprio entre esses gêneros?
Elieni Caputo – A fronteira entre gêneros pra mim é algo bem tênue, que nunca respeitei muito… No Laço de fita, a mistura entre poesia, prosa e ensaio fica bem evidente, e no Coisas de verdade as fronteiras entre gêneros são bem esgarçadas. A gênese dessa mistura está na minha formação e nas minhas idiossincrasias individuais: eu comecei a escrever poemas aos dezoito anos; meus três primeiros livros foram de poemas e, ao mesmo tempo, sempre tive um raciocínio científico, de pesquisadora; publico artigos, ensaios… Creio que eu tenha sim encontrado um espaço próprio de escrita no limiar dos gêneros, no trânsito entre eles e mesmo na subversão deles.
Alan dos Santos – O livro tem o formato de diálogo. Ele é todo composto por diálogos entre uma princesa e um sapo. Uma princesa que parece se queixar de um enclausuramento e de solidão. Já o sapo, parece viver de um jeito próprio pré-determinado pela natureza e distante do sofrimento humano, sempre atrelado à busca por sentido e à intelecção. Em algum momento do livro o pensamento e a capacidade de pensar são apresentadas como expressão de potência, mas também como doença, a depender da dose. Por outro lado, há algo de monólogo, de fluxo de consciência: acompanhamos um ser elaborando a si mesmo e ao mundo de forma fluída e contínua. Como você chegou a esse formato de diálogo?
Elieni Caputo – A inspiração para a conversa entre Sapo e Princesa veio da estrutura dialógica do livro da Clarice, Um sopro de vida, que se dá na alternância entre os personagens Autor e Angela Pralini. Eu não escreveria um romance nos moldes tradicionais, e vi no texto da autora uma estrutura que possibilitaria a expressão de algo em germén em mim: reflexões sobre vida, morte, tempo, memória, sofrimento, dor, solidão, enfim, todas as questões que atravessam As coisas de verdade.
Alan dos Santos – Queria aproveitar esse momento para te perguntar sobre o GENAM – Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura, Narrativa e Medicina. Sei que você é membro e pesquisadora do grupo. Eu dou aulas de Ética e Políticas Públicas num curso de Medicina. Fiquei muito curioso para saber como vocês tratam a relação entre Literatura e Medicina. Você poderia falar um pouquinho sobre isso, por gentileza?
Elieni Caputo – O GENAM nasceu do encontro entre o médico Carlos Eduardo Pompilio e a professora Fabiana Carelli, em 2011. O grupo articula Literatura, Saúde, Arte e Ciência, tendo como pensadores de base Heidegger, Hegel, Paul Ricoeur, Levinas e outros. O GENAM tem uma perspectiva interdisciplinar, que entende a arte e a literatura como constitutivos do humano. O grupo não tem uma visão utilitária da literatura, ou seja, ela não é vista como mero instrumento de cuidado à saúde; a abordagem é mais abrangente,e entende o fenômeno literário como inerente à prática clínica, visto que diferentes gêneros a atravessam, como o drama, a tragédia, a poesia, a narrativa. Em suma, o GENAM aborda os encontros existenciais entre médicos e pacientes e a forma como o literário os atravessa.
Alan dos Santoa – Fale um pouco sobre a parceria com a Fabiana Carelli, que fez as belíssimas aquarelas do livro, e com a editacuja. O livro-objeto é belíssimo. A capa é muito bonita, as ilustrações ao longo do livro também, há detalhes e destaques textuais que potencializam a experiência de leitura. É um livro gostoso de se ter em mãos. Como foi o contato com a editora e a preparação do livro?
Elieni Caputo – Eu procurei a Editacuja porque ela propõe a sinergia entre forma e conteúdo na tessitura do livro, e era justamente isso que eu procurava nessa nova publicação. Eu já conhecia a editora, Erica Casado, a quem dei meu primeiro livro de presente, mas fazia muito tempo que não nos víamos. A reação inicial da Érica quando enviei o Coisas de verdade foi muito engraçada, porque foi um misto de estranhamento com admiração pelo texto, e ela ficou animada para publicá-lo. Sugeri então a parceria com a Fabiana porque me encantei com o trabalho artístico que ela vem desenvolvendo em Princeton: trata-se do Projeto Pequenos Hermeneutas, o qual traduz o pensamento do GENAM em livros ilustrados, acoplando diferentes técnicas como colagem, montagem, ilustração. A Fabiana, ao ler As Coisas de Verdade, percebeu que o livro atuava com a dimensão da metamorfose e da revelação/ocultação e, com base nessa percepção, que pra mim fez muito sentido, ela compôs as aquarelas. Também foi da Fabi a ideia de selecionar trechos do livro e colocá-los em destaque, o que foi materializado pela Editacuja no trabalho artístico feito no corpo do texto.
Alan dos Santos – Elieni, fiquei curioso para conhecer mais sobre as suas referências e leituras atuais. Cite três livros que você leu nos últimos tempos e que afetou você de alguma forma.
Elieni Caputo – Acabei de ler o Certeza do agora, do Juliano Garcia Pessanha, que saiu pela Editora Nós. Eu o considero um grande escritor contemporâneo, que também trabalha com o hibridismo dos gêneros literários e a filosofia. Estou finalizando os diários de Kafka que, a propósito, estamos lendo em um grupo de estudos do Juliano. Kafka, para mim, é uma referência constante e primordial. Uma autora contemporânea de quem gosto bastante é a Cida Sepulveda: li recentemente seu último livro, O vestido criou Ana, também publicado pela Editacuja. É de uma força poética grande essa escritora, como Manoel de Barros já havia notado e reconhecido no passado…
Alan dos Santos – Por fim, sinta-se a vontade para comentar qualquer outro aspecto do livro que porventura eu não tenha te perguntado.
Elieni Caputo – Quero aproveitar para convidar os leitores a adentrarem As coisas de verdade: creio que esse livro possibilita uma viagem única e profunda, vertiginosa mas também delicada. São os leitores que trazem vitalidade e continuidade para o que foi escrito, então fica esse convite carinhoso. Mais uma vez, muito obrigado pela oportunidade da entrevista! As coisas de verdade habitam as pedras foi o primeiro livro que li em 2024. Não poderia ter começado o ano de forma melhor.
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